A Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta que o conceito de saúde é bem mais abrangente que a simples ausência de doença: é um completo estado de bem-estar físico, mental e social e, dessa forma, merece atenção em todos as suas vertentes.
A saúde mental está relacionada à forma como uma pessoa reage às exigências, desafios e mudanças da vida e o seu desequilíbrio pode desencadear transtornos psicológicos, como ansiedade e depressão, os quais são a soma de fatores ambientais e genéticos. Estima-se que cerca de 10% da população mundial apresente algum transtorno mental1.
Os tratamentos atuais consistem na psicoterapia e no uso de medicamentos como antidepressivos e ansiolíticos. No entanto, esses possuem uma gama de efeitos adversos, como ganho de peso e boca seca no caso dos antidepressivos tricíclicos (ex.: amitriptilina) e déficit de memória e problemas cognitivos no uso de ansiolíticos como os benzodiazepínicos (ex.: clonazepam). Além dos efeitos colaterais, a longo prazo, causam dependência, tolerância e síndrome de abstinência e muitos pacientes não obtém resultados satisfatórios. Isso enfatiza a necessidade de novas terapias, mais seguras e eficazes.
A Cannabis sativa, devido as suas propriedades de ação no nosso sistema endocanabinoide de regulação do funcionamento cognitivo, comportamental e do ciclo circadiano, é uma ferramenta potencial em diversos transtornos. Estudos mostram que o canabidiol (CBD), principal componente da planta, possui atividade ansiolítica, antipsicótica e antidepressiva. Dessa forma, o CBD pode ser utilizado no tratamento de vários prognósticos coexistentes, reduzindo a quantidade de medicamentos, com consequência direta na diminuição de reações adversas e interações medicamentosas2.
Confira como a Cannabis medicinal pode ajudar em diferentes casos:
Ansiedade
O CBD tem um amplo perfil farmacológico, incluindo interações com vários receptores conhecidos por regular o medo e comportamentos relacionados à ansiedade.
Um ensaio clínico realizado no Japão avaliou sua eficácia no transtorno de ansiedade social. O grupo que recebeu Cannabis medicinal obteve respostas significativas em todas as escalas de avaliação em comparação ao placebo3. Outro estudo, publicado em 2019, realizou uma análise retrospectiva, observando a diminuição da ansiedade em 79,2% dos participantes nas primeiras 4 semanas de uso do CBD, em que apenas 4% apresentaram efeitos colaterais4.
Depressão
Além de serem capaz de interagir com receptores serotoninérgicos e glutamatérgicos, sistemas envolvidos na fisiopatologia da depressão, os canabinoides induzem alterações celulares e moleculares, como o aumento dos níveis do BDNF e das sinapses do córtex pré-frontal, bem como aumentam a neurogênese no hipocampo, regiões do cérebro que apresentam baixa atividade em pacientes depressivos5.
Pesquisadores da Universidade do Novo México coletaram dados de mais de mil usuários de Cannabis medicinal e avaliaram o potencial na redução imediata dos sintomas depressivos. Foi observado que 95,8% dos pacientes obtiveram melhora dos sintomas após o consumo6.
Insônia
O sistema endocanabinoide, estimulado pela Cannabis, tem um papel importante na indução e manutenção do sono REM.
Diversos estudos mostram evidências duais no tratamento de distúrbios do sono. Os resultados obtidos sugerem que os tipos e concentrações dos canabinoides presentes afetam o sono de maneiras diferentes. Doses baixas de tetrahidrocanabinol (THC) são sedativas, auxiliando na indução e manutenção do sono, entretanto, doses elevadas pioram a qualidade do sono e podem causar euforia e excitação, sintomas não desejados. Já com o CBD ocorre o oposto, doses elevadas são mais benéficas neste contexto7.
Uma pesquisa recente acompanhou pacientes que substituíram o uso de medicamentos benzodiazepínicos pelo óleo de extrato de Cannabis. Com os benzodiazepínicos, todos os pacientes relataram sentir efeitos adversos, como esquecimento, dores de cabeça, tontura e confusão mental. Em contrapartida, 60% deles relataram não sentir nenhum efeito adverso com a Cannabis, sendo que 80% dos participantes optaram pela utilização do óleo de extrato de Cannabis para o controle da insônia8.
Transtorno de Estresse Pós-Traumático
O Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) é um distúrbio no qual, após a exposição a eventos traumáticos, os pacientes desenvolvem um conjunto de sintomas, incluindo memórias angustiantes, comportamentos de evitação, percepções aumentadas de ameaça e pesadelos recorrentes9.
De acordo com estudos pré-clínicos, o CBD auxilia na interrupção da consolidação da memória do medo, processo relevante para a psicopatologia da doença10. Diante disso, um ensaio examinou a administração de CBD por 8 semanas em pacientes com TEPT. Houve uma redução significativa na gravidade e intensidade dos sintomas, com baixo perfil de efeitos colaterais11.
Após 2 anos de acompanhamento de pacientes com TEPT do Programa de Cannabis Medicinal do Novo México, os pesquisadores encontraram uma redução de 75% na sintomatologia nos pacientes que usaram Cannabis medicinal em comparação com os que não a utilizaram12.
Além disso, veteranos de guerra americanos relataram reduções significativas nos pensamentos e sonhos perturbadores e nos comportamentos de evitação com o uso de Cannabis medicinal13. Neste cenário, os canabinoides sintéticos também se mostraram promissores, em que um estudo avaliou militares canadenses a fim de avaliar o potencial da Nabilona, um análogo do THC, para o tratamento dos pesadelos relacionados ao TEPT, em que obteve redução significativa em relação ao placebo14.
Esquizofrenia
A esquizofrenia é caracterizada pela presença de delírios, alucinações, apatia, função cognitiva prejudicada, comportamento desorganizado e alterações psicomotoras.
Os fármacos antipsicóticos, tratamento de primeira linha, atuam através do antagonismo dos receptores dopaminérgicos15. Embora sejam eficazes na maioria dos pacientes, a resposta terapêutica é pobre em até um terço dos pacientes16, refletindo em uma ausência da função da dopamina elevada neste subgrupo17.
Um ensaio clínico demonstrou efeitos benéficos do CBD em relação ao placebo, diminuindo os sintomas psicóticos e aumentando o desempenho cognitivo. Como os efeitos do CBD parecem não depender do antagonismo do receptor de dopamina, esse agente pode representar uma nova classe de tratamento para pacientes refratários18.
Pesquisadores compararam o CBD e a amissulprida, um potente antipsicótico, na esquizofrenia aguda. Após 4 semanas de tratamento, ambos os medicamentos levaram a uma melhora clínica significativa, mas o CBD foi associado a menos efeitos adversos, como tremores e ganho de peso19.
Quanto ao THC, estudos mostram que altas doses podem induzir sintomas psicóticos tanto em voluntários saudáveis, quanto em pacientes esquizofrênicos, sugerindo que a hiperatividade do sistema endocanabinoide pode contribuir para estados psicóticos. Isso corrobora com os achados, visto que o CBD é capaz de modular essa hiperatividade19.
Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade
O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) possui causas genéticas e ambientais e se caracteriza por sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade. Recentemente, uma maior atenção tem sido dada ao papel do sistema endocanabinoide no TDAH. Foi observado que crianças com esse diagnóstico possuem a degradação da anandamida, um endocanabinoide, prejudicada em comparação com indivíduos saudáveis20. Além disso, estudos genéticos encontraram uma correlação entre o gene do receptor canabinoide e a fisiopatologia do transtorno21.
Descobriu-se que a Cannabis medicinal é útil para uma variedade de sintomas, incluindo melhora da concentração e do sono, bem como redução da impulsividade. Após esta pesquisa, 73% dos participantes preferiram usar apenas canabinoides, enquanto 27% passaram a combina-los com outros medicamentos estimulantes22.
Um relato de caso investigou um paciente adulto com TDAH que, após apresentar efeitos adversos com o metilfenidato, medicamento mais utilizado neste prognóstico, acessou o tratamento com canabinoides e obteve o foco aprimorado, hiperatividade reduzida, controle de impulsos e melhor tolerância à frustração23.
Distúrbios Alimentares
A anorexia nervosa é um distúrbio alimentar resultado da preocupação exagerada com o peso corporal e que pode provocar problemas físicos graves. Neste cenário, o sistema endocanabinoide tem sido implicado na mediação da ingestão de alimentos.
O potencial para explorar a atividade do THC a fim de reverter a perda de peso foi investigado em um modelo de roedor de anorexia. O tratamento com THC estimulou a ingestão de ração e reduziu significativamente a perda de peso corporal, deslocando os marcadores de termogênese e do metabolismo lipídico. Estas alterações foram significativamente maiores do que as observadas no grupo placebo24.
Referências
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